sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Festa do quê mesmo?


O que disseram ser o ópio dos povos? Seria a religião? Quem foi que disse que o povo quer pão e circo?
Há anos vivemos atolados e sufocados por um imenso mar de lama na política. Tudo tem decepcionado: o Estado, a religião, as instituições. De um lado e de outro vê-se um escândalo envolvendo um líder ou um segmento religioso; a escola não é um lugar onde se forma cidadãos conscientes, mas onde professores depressivos descontam suas mágoas de um sonho destruído – o de educar –, em razão do descaso do Estado e onde os enjeitados, vindos de sem-famílias, vão parar para dar sossego às mães; o casamento tem sido vituperado a cada dia, a família picada, esfacelada, esquartejada. O trabalho? Não, o trabalho não enobrece o homem: enriquece o capitalista.
Há uma semana uma criança de 6 anos foi arrastada por sete quilômetros presa ao cinto de segurança, pendurada do lado de fora de um carro roubado em assalto no Rio de Janeiro. Há três anos um casal de jovens foi brutalmente assassinado num sítio ermo da Grande São Paulo. Há alguns meses o crime, que é organizado, parou a maior cidade da América Latina. São só exemplos, amostra da grande realidade. Chico Mendes, Ives Ota, Doroty Stang, Gabriela do Prado Maia Ribeiro, Liana Friedenbach, Felipe Caffe, maria, francisco, marcos, alexandre, fátima, antonio, márcia... O que temos a comemorar mesmo?
O prefeito entrega a chave simbólica da cidade ao personagem que representa o dono da festa. Este, agora, está em casa. E faz tudo o que um dono de casa tem autonomia para fazer.
Comemoremos as centenas de crianças que nascerão daqui a nove meses, fruto do êxtase da embriaguez e drogadição, do prazer pelo prazer... crianças de pai desconhecido, que não serão bem-vindas, que não terão um lar e um berço as esperando, que serão mais um número nas filas dos postos de saúde, nas listas de bolsas do assistencialismo governamental, nas lista de leite da prefeitura, nas filas de espera das creches municipais... ou que serão mais um resto orgânico na lata de lixo de uma clínica fundo-de-quintal nas mãos de um “fazedor de anjo”. Ou o motivo de peleja judicial pelo reconhecimento do direito a alimentos...
Comemoremos os lares destruídos pelo adultério ou assassínio.
Comemoremos as dezenas de acidentes de trânsito. Os feridos, aleijados e mortos. Os primeiros ficarão horas esperando atendimento em um corredor de hospital, esperando talvez uma equipe médica que está na praia, pois estamos em festa, ora!. Os segundos terão suas vidas e as vidas de suas famílias completamente mudadas; passarão a freqüentar fisioterapias, sessões de reabilitação, entrarão na fila da entidade de assistência ao defeituoso; ou viverão o resto de suas vidas inutilizados no leito. Os últimos abrirão um buraco no coração dos seus queridos, interromperão carreiras brilhantes, sonhos fascinantes, planos de casamento, promessa de presente para a esposa e passeio para os filhos.
Comemoremos a proliferação – e prevalecimento – do tráfico de entorpecentes, as pessoas que iniciarão sua carreira suicida, os já escravizados que sofrerão a over...
Ah, mas a cultura... A cultura? Sufocada e desfocada pela balbúrdia dos convidados do dono da casa, a cultura voltará a falar na quarta-feira. Após o meio-dia.
Mas comemoremos estes dias.
Perto desse clima de euforia e da memória curta brasileira, aliados à falta de mobilização pelo que realmente importa e ao desprezo por tudo o que se chama Deus, o caráter opiáceo da religião perde feio.
Qual é o motivo da festa mesmo?